O tratado moral escrito por Sêneca chamado “Da tranquilidade da alma” reflete a dificuldade que é para o homem comum e também para o sábio manter a sua serenidade perante o espetáculo da injustiça e da baixeza, do qual é testemunha todos os dias.
No entanto, o sábio não pode desprezar os maus, porque, em todos os tempos, as condições morais são quase sempre as mesmas. Se o mal é uma necessidade da vida, à qual os homens não se podem subtrair, não se deve odiá-los e, sim, aprender a respeitá-los.
Da tranquilidade da alma é um texto estruturado como um diálogo. Sereno, amigo do filósofo, dá início ao livro pedindo a ele que lhe faça esclarecimentos que minimizem sua angústia interior e o levem a um estado de tranquilidade da alma.
A partir daí, Sêneca vai, então, refletir sobre a maneira de contornar os obstáculos que impedem a paz.
Sêneca ensina a importância da reflexão interior e do afastamento das emoções carregadas de vícios, ambições e ânsia por poder e por bens materiais. Segundo ele, apenas dessa maneira pode-se viver serenamente e de modo pleno, à procura pelo aprimoramento espiritual. Ou seja, dedicando-nos ao espírito, ao pensamento e à harmonia com a natureza, fonte de toda a vida.
Logo abaixo, separei algumas das principais partes desse tratado moral chamado “Da tranquilidade da alma” não deixe de conferir!
Da tranquilidade da alma
Sêneca começa o diálogo com seu amigo, visando diminuir as angústias interiores que ele passava, da seguinte forma:
“O que tu queres, pois, é grande, de máxima importância e próximo de um deus: não ser abalado. Os gregos chamam a este estado estável da alma de eutymia, sobre tal tema existe uma excelente obra de Demócrito. Eu o chamo de tranquilidade.
Portanto, investiguemos de que modo a alma deverá prosseguir sempre de modo igual e no mesmo ritmo. Ou seja, estar em paz consigo mesmo, e que essa alegria não se interrompa, mas permaneça em estado plácido, sem elevar-se, sem abater-se. A isso eu chamo tranquilidade. Investiguemos como alcançá-la. Isso feito, tu tomarás desse remédio universal a teu gosto.
Examinando tal mal-estar, cada um reconhece qual a parte dele é sua. Ao mesmo tempo, compreenderás quão pequeno é teu problema pessoal em relação ao de outros, presos a uma profissão brilhante ou a um título importante. Em tal situação, mais por vergonha do que por decisão própria, impera a simulação.
Todos eles estão na mesma situação, tanto os que estão envergonhados por sua própria leviandade – pelo tédio e pela contínua mudança de propósitos, aos quais agrada sempre mais o que foi abandonado – quanto aqueles que relaxam e passam a vida bocejando.
Acrescente também aqueles pouco dados a mudanças, não por obstinados, mas por inércia, já que vivem como não gostariam, mas como sempre o fizeram.
São inumeráveis as propriedades do vício, mas o seu efeito é um só: o aborrecer-se consigo mesmo. Isto nasce do desequilíbrio da alma e dos desejos tímidos ou pouco prósperos, visto que não ousam tanto quanto desejam ou não o conseguem.
Todos os males se agravam quando, longe dessa incômoda angústia, obtém-se a paz na tranquilidade ou nos estudos solitários, os quais não pode suportar uma alma dedicada às coisas cívicas, desejosa de ação e, por natureza, inquieta. Ou seja, não encontra consolo em si mesma. Por isso, privado dos deleites que as mesmas ocupações proporcionam aos que as perseguem, não suporta a casa, a solidão e as paredes. Desgostoso, vê-se como um ser abandonado.
Por esse motivo, advêm tristeza, fraqueza e milhares de flutuações de uma mente tomada pela indecisão. Ela mantém em suspenso as esperanças suscitadas e se frustra na desolação.
Consequentemente, aquela disposição de detestar o seu próprio repouso e de se queixar por não ter nada para fazer, e também de invejar fortemente o sucesso do próximo. A inércia não desejada alimenta a inveja, ambiciona a ruína de todos, porque não conseguiu atingir o seu próprio êxito.
Daí o empreender vagas peregrinações e o percorrer praias e mares desconhecidos, tanto na terra como no mar, sempre em busca de emoções, experimentando o que não tem no fastio da situação presente.
Uma coisa sucede a outra, e os espetáculos se transformam em outros espetáculos. Como disse Lucrécio: “Desse modo, cada um foge de si mesmo”. Mas em que isso é proveitoso, se, de fato, não se foge? Seguimos a nós mesmos e não conseguimos jamais nos desembaraçar de nossa própria companhia!
Assim, devemos saber que o mal contra o qual trabalhamos não vem dos lugares, mas de nós mesmos; somos fracos para tolerar qualquer incômodo, não suportamos trabalhos, prazeres, desconfortos por muito tempo.
Isso levou muitos à morte, porque, frequentemente mudando seus propósitos, voltavam sempre para o mesmo ponto de partida, não deixando espaço para as novidades. Assim, a vida começou a lhes entediar e também o próprio mundo, até que, sem perspectiva, ouça aquele clamor: “Até quando sempre as mesmas coisas?!”
Também existe lugar na vida privada para que uma alma grande possa se desenvolver amplamente, do mesmo modo que a fúria do leão e de outros animais não diminui em suas jaulas, assim também ocorre com os homens, cujas maiores ações são as que realiza no recolhimento.
Pois não apenas é proveitoso aos assuntos públicos quem promove candidatos, defende os réus e delibera sobre paz e guerra, mas também quem exorta a juventude; quem, com a falta de bons preceptores, infunde virtude às almas; quem prende ou retrai os que correm em direção do dinheiro e da luxúria e, se nada mais consegue, certamente os retarda e age, de modo particular, para o bem privado e público.
Por acaso serve melhor ao bem público o pretor que emite sentenças entre estrangeiros e cidadãos ou, se é pretor urbano, ao repassar as sentenças de seu assessor, estaria realizando tarefa mais importante que o filósofo que ensina o que vêm a ser justiça e dever, o que é piedade, paciência, fortaleza, desprezo pela morte, entendimento acerca dos deuses e, finalmente, como é seguro e gratificante estar com a consciência tranquila?
Portanto, se empregas em estudos o tempo que subtraíste dos deveres, não significa que faltaste com as tuas obrigações. Não é soldado apenas aquele que está no fronte de combate e defende ambos os lados, esquerdo e direito, mas também aquele que defende as portas e permanece em lugar de menor perigo, assim como não é em vão servir como vigia e guardar o armamento. Tais ocupações, embora não sejam sangrentas, também fazem parte dos serviços militares.
Se te recolhes aos estudos, fugirás de todo o fastio da vida. Não será porque te aborrece o dia que escolherás a noite, nem a presença de pessoas te será excessivamente pesada. Atrairás a amizade de muitos homens e também os melhores acorrerão a ti. Isso porque a virtude, ainda que esteja obscura, nunca se esconde, mas emite os seus sinais. Quem quer que seja digno dela captará os seus vestígios.
Nunca é inútil o trabalho de um bom cidadão. Ele sempre coopera seja pelo que ouve ou pelo que vê, seja pela fisionomia ou pelos gestos, seja pela tácita obstinação ou até pelo modo como caminha.
Tal como certos medicamentos que, embora não sejam ingeridos ou tocados, agem pelo odor, assim também é a virtude, que difunde a sua utilidade à distância e de modo oculto. Ela ou se espalha livremente e usa do seu direito, ou tem precários meios de se expandir e é coagida a recolher suas velas, ou parada e muda se mantém estreitamente cercada ou ainda publicamente aberta, é de todo modo proveitosa. Por que tu pensas que é de pouca utilidade o exemplo daquele que, em recolhimento, vive bem?
Assim, o melhor é misturar o repouso com a ação, sempre que a vida ativa não trouxer impedimentos ocasionais ou por circunstâncias políticas. Em todo caso, nunca se fecham completamente todos os espaços de modo que não haja lugar a algum gesto de virtude.
Primeiro, devemos examinar a nós mesmos; em seguida, os negócios que vamos empreender; por fim, aqueles pelos quais e com os quais iremos trabalhar.
Antes de tudo, é necessário estimar a própria capacidade, pois, muitas vezes, parece que podemos suportar mais do que realmente podemos. Assim, um fracassa por sua confiança na eloquência; outro, porque exigiu do seu patrimônio mais do que podia; um terceiro, de saúde debilitada, ficou sobrecarregado pelo trabalho penoso.
A uns, a timidez é pouco adequada para os cargos públicos, que requerem a cabeça erguida; a outros, a inflexibilidade não os torna aptos para a vida social; outros, ainda, não têm controle sobre a sua ira, e qualquer indignação os faz lançar palavras agressivas; há aqueles também que não sabem se conter com civilidade nem se abster de gracejos perigosos.
Para todos estes, é mais útil o recolhimento que os negócios públicos. Deves considerar, pois, se a tua natureza te torna mais apto para as ações ou para o estudo ocioso e contemplativo, e deves te inclinar ao que com força te atrai.
Depois, devemos examinar as obras que empreendemos e comparar as nossas forças com as coisas que vamos tentar fazer, pois sempre deve ser maior a força daquele que trabalha do que a da obra a ser realizada, visto que, obrigatoriamente, se as cargas forem maiores que o carregador, elas irão oprimi-lo com seu peso.
Além do mais, existem outras atividades que não são tão grandes nem fecundas, trazendo muitos outros afazeres. Devemos fugir delas, pois, uma vez que nos aproximamos, não existe uma saída fácil. Apenas se deve pôr a mão naquelas coisas que se sabe que têm fim, ou que se pode fazer, ou ainda as que certamente se pode esperar concluir. Deixemos de lado todas as atividades que vão além da medida e não terminam onde deveriam.
Deve-se ter uma cuidadosa escolha dos homens, para sabermos quais são dignos de que lhes consagremos uma parte da nossa vida ou se é proveitoso que com eles percamos tempo, pois alguns nos imputam como dever aquilo que voluntariamente lhes concedemos.
Nada, pois, é mais proveitoso a uma alma do que uma amizade fiel e doce. Quão bom é encontrar corações preparados para guardar todo segredo. Tu temes menos a consciência deles que a tua própria. A conversa deles alivia a solidão. As sentenças deles se tornam conselhos. O seu gracejo dissipa a tristeza, a própria presença deleita!
Tanto quanto for possível, devemos escolhê-los dentre os isentos de paixões desregradas, porque os vícios entram sutilmente e passam para quem está próximo e prejudicam pelo contato.
Assim, na escolha dos amigos, devemos ter trabalho de escolher os menos maculados. O início da doença resulta da mistura dos doentes com os sãos.
Deve-se evitar, no entanto, os tristes e aqueles que deploram todas as coisas, para os quais tudo é motivo de brigas, mesmo que eles demonstrem fidelidade e benevolência, pois é inimigo da tranquilidade o companheiro inquieto e que geme por tudo.
Aprendamos a nos apoiar em nossos próprios membros; moderemos o nosso comer e o nosso vestir não a modismos, mas ao que nos ensinaram os antepassados.
Aprendamos a cultivar o comedimento, a refrear a luxúria, a moderar a ânsia de glória, a suavizar a ira, a olhar com simpatia a pobreza, a cultivar a frugalidade; embora essas coisas envergonhem a muitos, empregando remédios mais simples para os desejos naturais. Aprendamos a eliminar os desejos licenciosos e a tensão em relação ao futuro. Devemos agir de modo que se possa pedir as riquezas a nós mesmos e não ao destino.
Até mesmo os gastos com os estudos, embora sejam os melhores gastos, só serão razoáveis se tiverem moderação. Para que inúmeros livros e bibliotecas dos quais o dono, durante uma vida inteira, lê apenas os índices? Uma infinidade de livros sobrecarrega, mas não instrui. Melhor ater-se a poucos autores do que errar por muitos.
Considera que os prisioneiros apenas no princípio se afligem com as algemas e os grilhões que impedem seus passos. Porém, quando resolvem não mais se irritarem e se propõem a suportá-los, a necessidade lhes ensina a levá-los com fortaleza, e o costume, com facilidade. De fato, em qualquer gênero de vida, encontrarás distrações, compensações e deleites, desde que queiras avaliar como leves os teus males, em lugar de fazê-los insuportáveis.
Cada qual, portanto, deve conformar-se à sua condição e, queixando-se dela o mínimo possível, apreender tudo o que ela tem de favorável. Não existe nada de tão amargo que não encontre consolo numa alma equilibrada.
Aquele que teme a morte nunca fará nada com dignidade.
Em vista disso, não devemos trabalhar para coisas inúteis nem por motivos inúteis, isto é, não devemos desejar o que não podemos conseguir, ou, se o conseguimos, que não compreendamos muito tarde e com vergonha a inutilidade dos nossos desejos, ou seja, que o trabalho não seja indigno nem desagradável e sem efeito ou que o efeito do trabalho seja indigno.
É preciso diminuir as idas e vindas, às quais se entregam grande parte dos homens que perambulam por casas, teatros e mercados, intrometendo-se nos negócios alheios, como se estivessem sempre ocupados.
Se perguntas a alguém ao sair de casa: “Aonde vais? Qual o teu destino?” Ele te responderá: “Por Hércules, não sei! Mas verei algumas pessoas, farei alguma coisa!” Vagam sem propósito, buscando alguma ocupação. Não fazem o que tinham proposto, mas o que se apresenta naquele momento. O percurso deles é sem proveito, igual à formiga que sobe e desce pela árvore, indo até o ponto mais alto e descendo para a base do tronco sem nada produzir.
Muitos conduzem a sua vida de modo semelhante. Deles, não sem razão, alguém diria que são de uma inércia inquieta.
Assim, todo trabalho tem um objetivo, tem algo em vista. Não é uma atividade válida que move os inquietos, mas, como os loucos, são as falsas imagens das coisas que os movem, pois nem esses se movem sem alguma esperança. Por isso os prende a aparência de alguma coisa cuja inutilidade a mente decrépita não apreende.
Penso que Demócrito professa tal doutrina quando diz: “Quem quiser viver tranquilamente, não faça muitas coisas nem particulares nem públicas”.
Claro que se referia às coisas desnecessárias, pois, se são úteis, tanto privada quanto publicamente, não apenas muitas, mas inúmeras devem ser feitas. No entanto, quando nenhum dever obriga, devemos restringir nossas ações.
O que se prevê é que há sempre algo por vir que poderia criar obstáculos para a realização de nossos propósitos. Certamente o pesar causado por uma decepção é bem menor quando o sucesso não foi previsto com antecipação e plena segurança.
Devemos também ter flexibilidade e não nos entregarmos obstinadamente às nossas decisões de maneira que possamos transitar para aquilo que o acaso traz. Não temamos a mudança nos projetos e nas situações, de modo que a leviandade, inimigo vício da quietude, não nos surpreenda.
Certamente, a obstinação perturba, pois frequentemente o destino lhe extorque algo. Por sua vez, a leviandade é muito mais grave, pois nunca se fixa em coisa nenhuma.
Esses dois defeitos perturbam a tranquilidade, porque, de um lado, opõem-se à mudança e, de outro, nada toleram.
Certamente a alma deve ser resguardada de todas as coisas externas. Confia em ti. Alegra-te contigo. Afasta-te o quanto podes das coisas alheias. Dedica-te a ti mesmo. Não te sensibilizes com prejuízos materiais. Enfim, procura interpretar com benevolência os fatos adversos.
Então a alma penetra na escuridão, porque diante da falência das virtudes, das quais nada mais se espera, já que não as possui, só lhe resta penetrar nas trevas.
Diante disso, devemos nos esforçar para que todos os vícios nos pareçam não como odiosos, mas como ridículos, e imitar antes Demócrito que a Heráclito. Este sempre que se encontrava em público, chorava; aquele ria. Tudo o que fazemos, a um parecia misérias; a outro, idiotices.
Deve-se, pois, aceitar todas as coisas e suportá-las com bom humor. É mais adequado à natureza humana rir que lamentar a vida. Além do mais, serve melhor ao gênero humano quem dele ri do que quem o deplora.
Aquele que ri tem alguma esperança, porém aquele que chora estupidamente não espera que possa se corrigir. Enfim, quem contempla o conjunto da realidade humana demonstra ter maior grandeza de alma ao não conter o riso do que quem não consegue reter as lágrimas. Simplesmente deixa-se levar por leve emoção, já que nada de grandioso, sério ou digno de lástima se faz presente nas falsas aparências.
Mas é bastante aceitar placidamente os costumes públicos e os vícios humanos sem cair no riso ou em lágrimas, porque se atormentar com os males alheios é uma eterna miséria e se deleitar com tais males é um prazer desumano.
Assim, é inútil chorar porque alguém enterra o seu filho ou ficar entristecido. Convém se conduzir de tal modo que, em teus próprios males, dês à dor o quanto a natureza pede, não o quanto os costumes cobram. De fato, muitos derramam lágrimas por simples ostentação, uma vez que mantêm olhos secos sempre que o espectador se vai, julgando ser torpe não fazê-lo quando todos o fazem. Tão profundamente se fixou este mal de estar dependente da opinião alheia que simula até uma coisa tão simples como a dor.
Também causa preocupação o fato de alguém tomar atitudes que não demonstram aos outros o que cada um é realmente. Assim, é a vida de muitos, falsa e pronta para a ostentação. De fato, o constante autocontrole atormenta tanto quanto o receio de ser pego num papel diverso daquele que está acostumado a representar.
Nunca nos livraremos dessa preocupação, já que cada olhar que examina é também questionador. De fato, ocorrem muitos incidentes que nos expõem contra a nossa vontade. Portanto, não é segura a vida daqueles que vivem sob uma máscara.
Quanto prazer tem a simplicidade sincera e autêntica, que nada esconde de seus costumes! No entanto, essa vida corre perigo de ser desprezada, se ela for exposta a todos. De fato, existem aqueles que se enfastiam do que veem muito de perto. Mas não existe perigo de que a virtude se torne vil ao se aproximar dos olhos, e é melhor ser incomodado pela simplicidade do que por uma perpétua dissimulação. Desse modo, sejamos moderados, pois há muita diferença entre viver com simplicidade e viver com negligência.
Faz-se necessário muito recolhimento para dentro de si próprio.
O contato com aqueles que são de outro nível atinge o nosso equilíbrio, renova paixões e excita debilidades latentes e tudo o que não esteja bem curado.
Solidão e companhia devem ser mescladas e alternadas. Esta desperta o desejo de viver entre os homens, aquela, conosco mesmos. Portanto, uma é remédio para outra. A solidão irá curar a aversão da multidão, e a multidão, o tédio da solidão.
Igualmente, não se deve manter a mente fixa apenas num único objetivo, ela deve ser conduzida, por vezes, às distrações. Sócrates não se envergonhava de divertir-se jogando com os meninos. Catão relaxava o espírito com o vinho, quando se sentia cansado das preocupações da vida pública. Cipião exercitava seu corpo triunfante e militar através da dança. Não como agora costumam fazer, com trejeitos afeminados, mas como os antigos costumavam fazer, nos jogos e nas festas, dançando virilmente, sem serem, por isso, desconsiderados, mesmo que tenham sido vistos pelos seus inimigos.
Deve-se dar à alma algum descanso. Repousando, ela se torna mais atilada para a ação.
Assim como não se deve exigir demais dos campos férteis, porque uma fertilidade nunca interrompida os esgotaria, também o trabalho contínuo abate o ímpeto das almas, cujas forças se recuperariam com um pouco de descanso e de distração. Quando o esforço é demais, ele transmite à mente certo esgotamento e frouxidão.
Certos homens não tenderiam tanto para passatempos e jogos se disso não tirassem algum deleite. A frequência, no entanto, absorve do espírito toda a força. Também o sono é muito necessário ao descanso, porém, se for contínuo, levará à morte. Existe muita diferença entre o afrouxar e o desligar.
Os legisladores instituíram os dias festivos para coagirem publicamente os homens a se alegrarem, interpondo ao trabalho uma interrupção necessária. Portanto, como já disse, grandes homens se davam mensalmente alguns dias de férias. Outros, enfim, alternavam uma jornada de trabalho com outra de lazer.
Lembremos o grande orador Asínio Polião, que de nada se ocupava após as quatro horas da tarde. Ele não lia nem uma carta depois dessa hora, para que não surgissem novas preocupações. Assim, em duas horas repunha as energias gastas durante o dia. Alguns cessavam suas atividades ao meio-dia, reservando as horas da tarde para os trabalhos mais leves.
Convém ser condescendente com a alma e dar-lhe algum descanso que atue como um alimento restaurador. Os passeios devem ser feitos em lugares abertos, para que a alma se fortifique com o ar puro. Às vezes, um passeio, uma viagem com mudança de região. Isso proporciona energia renovada.
Igualmente, uma refeição alegre e uma bebida mais abundante, podendo chegar à embriaguez, não para nos afogarmos, mas para nos divertirmos, porque dissolve as preocupações, comove até o íntimo da alma e cura não apenas a tristeza, mas também outras doenças.
Assim como para a liberdade, a moderação também é saudável em relação ao vinho.
Mas não se deve fazer referência a isso com frequência, para que o indivíduo não seja levado pelos maus costumes. De toda forma, é necessário, de vez em quando, afrouxar as rédeas, para interromper, de leve, a moderação e levá-la à exultação e à liberdade.
Demos crédito ao poeta grego: “De vez em quando é alegre enlouquecer”. E ainda Aristóteles: “Nunca existiu um grande gênio sem nenhuma mistura de loucura”.
Aqui estão, meu caro Sereno, os meios para conquistar a tranquilidade e a forma como podes recuperá-la, já que tens como resistir aos vícios quando aparecem subrepticiamente. Porém, e isso já deves saber, nenhum deles é suficientemente forte para conservar um bem tão frágil se não houver intenso e assíduo cuidado.”
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