A morte não é um fim, mas uma passagem. Tanto para o Buda como para Sócrates e Jesus nossa existência terrena deve ser compreendida numa perspectiva mais larga, que implica uma vida após a morte. Esse é o primeiro ponto central comum ao ensinamento deles.
A insistência na necessidade de desenvolver a vida interior, de procurar a verdade, de conquistar a sabedoria, a justiça e o amor, não pode ser compreendida senão em relação a essa crença.
Vamos falar detalhadamente sobre a visão que cada um desses mestres tinham a respeito da alma.
Buda: Sair da Roda dos renascimentos
Quando o príncipe Sidarta inicia sua busca, ele e vai à floresta ficar com Alara, um mestre muito conceituado. Ele ainda não se tornará o Buda, mas resumiu o objetivo de sua busca para o mestre:
“Não procuro ter discípulos. Procuro apenas o fim do ciclo dos nascimentos e a pacificação duradoura.”
Em outras palavras, uma solução para o enigma da existência, uma felicidade que perdure para além da felicidade fugaz que os bens terrenos trazem, tanto nesta vida quanto nas por vir.
Sidarta está convencido de que essa solução existe, e que sua chave é acessível nesta vida mesmo. Ele a encontrará quando alcançar o Despertar.
Para o Buda, a vida não é nada mais do que um círculo de sofrimentos que começa no nascimento, pontuada, em seguida, pelo “envelhecimento, a doença, a morte, a tristeza, a impureza” (Majjhima Nikaya, 26).
O meio que ele apresenta para sair disso se articula em torno de três noções que ele não inventou, mas que, já na sua época, tinham sido recuperadas do fundo védico e redefinidas pelos ascetas que edificariam o hinduísmo e o jainismo tais como os conhecemos hoje.
Elas se resumem a três palavras sânscritas: o karma, o samsara e o nirvana.
Para compreender essas noções, convém inicialmente definir o que é o Eu no ensinamento do Buda — esse Eu que acumula carma, mantendo-o no samsara e impedindo-o de alcançar o nirvana.
O hinduísmo postula a existência de um Eu permanente, o atmã — equivalente à alma na tradição ocidental —, que se reencarna até a libertação definitiva da roda dos renascimentos.
Em seu primeiro sermão de Benares, o Buda define o atmã como uma projeção mental e postula um anatmã, um não Eu.
Segundo ele, todo ser vivo é a combinação de cinco elementos em constantes flutuações: o corpo ou a matéria, as sensações, as percepções, as formações do espírito e a consciência.
Portanto, o Eu é, por definição, impermanente, inconstante, mudando de um segundo para o outro, sempre temporário, como são o fogo que crepita ou a água que corre.
Um célebre diálogo entre o monge budista Nagasena e o rei Manandro (Milinda), que reinou no século II a.C., no noroeste da Índia, permite melhor compreender essa noção.
O monge pede que o rei lhe defina o que é uma carroça, e ele lhe cita sucessivamente os elementos que a constituem: a carroça é uma roda? Um eixo? Uma corda? Ela é a soma desses elementos? O rei lhe responde pela negativa antes de dizer ao monge que a carroça é um conjunto, numa determinada ordem, de todos os elementos que ele citou. O monge lhe diz então que assim é o Eu.
Agora, vamos falar sobre o Carma.
Na doutrina hindu, que o chama de karman, trata-se de uma lei de causalidade própria de cada ato que realizamos, da sua intenção e do seu resultado, que condiciona a reencarnação do atmã.
Para o Buda, é a intenção do ato, e não o ato em si, que determina seu valor cármico. Existem atos ditos puros ou neutros, livres de todo o carma: são atos comuns como dormir ou se lavar, realizados sem intenção positiva ou negativa.
Por outro lado, existem atos intencionais (do corpo, da palavra ou do pensamento), realizados sob o efeito da crença em um Eu, e animados pela sede de devir pessoal.
Eles são ditados por nossos desejos e nossas aversões: eu busco o que me é prazeroso, eu rejeito o que me é desagradável, e, conforme o ato seja nocivo ou benéfico a outrem, dele resulta um peso cármico negativo ou positivo, que acumulamos, e que nos mantém no samsara.
Dependendo do peso do carma que ele acumulou, o indivíduo renasce numa das seis esferas de existência, cada uma subdividida em vários “estados de consciência”: as dos deuses, em que a vida se conta em milhões de anos, dos “titãs” (ou deuses invejosos), dos humanos (a mais favorável, porque somente ela dá acesso ao Despertar), dos animais, dos espíritos ávidos e, finalmente, dos infernos.
No entanto, para o Buda, como acabamos de ver, não existe um Eu imutável chamado a se reencarnar: com a morte do indivíduo, os cinco componentes que formam o Eu, onerados com o peso cármico, se separam e se reúnem novamente sob esse peso.
Formam eles um Eu idêntico ao que se extinguiu? O budismo responde a essa interrogação dando o exemplo de uma vela que se apaga que reacendemos. Trata-se certamente da mesma vela, da mesma cera, da mesma mecha, mas pode-se dizer que o fogo que dela jorra é o mesmo que foi apagado?
A única saída, para nos libertarmos do samsara, é o nirvana, chamado de moshka (libertação) pelos hindus. Desse estado último de libertação, o Buda disse bem pouca coisa, a não ser que especulações sobre ele são inúteis, já que ele ultrapassa as capacidades da experiência e do entendimento humanos.
Sócrates: A viagem da alma imortal
Quando lemos os diálogos de Platão nos quais Sócrates desenvolve sua teoria da imortalidade, em particular Fedro e Fédon, não podemos deixar de nos surpreender com a espantosa proximidade existente entre suas teses e as do Buda.
De fato, embora Sócrates defenda a existência de uma alma permanente e indestrutível, enquanto o Buda a recuse por sua teoria do não Eu, ambos sustentam a tese de um ciclo de renascimentos, cada renascimento estando condicionado pelo que o precedeu, e esse ciclo tendo como objetivo uma purificação que visa alcançar esferas superiores.
Se o Buda herdou sua teoria da Índia védica, Sócrates apresentou ideias que se encontram notadamente em seu antepassado Pitágoras, filósofo, matemático e, sobretudo, mestre de sabedoria e criador de uma escola iniciática.
Pitágoras também afirmava a preexistência da alma, cuja encarnação terrestre não é uma recompensa, mas um castigo. Carregada de erros e ávida por alcançar a terra dos Felizes, a alma deve aproveitar esta vida para se purificar por rituais e práticas de ascese.
Se ela falha, o que é frequentemente o caso, é condenada a se reencarnar sob forma humana, ou, ainda pior, numa planta ou num animal
A alma, segundo Sócrates, “é semelhante ao que é divino, imortal, inteligível, simples, indissolúvel, sempre o mesmo, e sempre semelhante a si mesmo”, enquanto o corpo “equipara-se ao que é humano, mortal, sensível, multiforme, dissolúvel, sempre em mudança, nunca semelhante a si mesmo” (Fédon 80b).
O corpo é destinado a desaparecer, mas Sócrates garante a imortalidade da alma, e pretende demonstrá-lo pela teoria do movimento: “Ora, o movimento é a essência e a natureza da alma” (Fedro, 245). Consequentemente, “a alma não pode ter nem nascimento, nem fim” (Fedro, 246)
Ele explica no Fédon, último diálogo que dedica à morte e à imortalidade, e que Platão, ausente nesse dia, mas confiando no testemunho dos companheiros, conta com sensibilidade:
“Chegou o momento de vos prestar contas das razões que me levam a acreditar que um homem que se entregou seriamente ao estudo da filosofia vê chegar a morte com tranquilidade e com a firme esperança de que, quando deixar esta vida, encontrará bens infinitos.
O senso comum ignora que a verdadeira filosofia é apenas uma aprendizagem, uma antecipação da morte. Sendo assim, não seria absurdo ter pensado somente na morte durante toda a vida e, quando ela chega, ter medo dela e recuar diante do que se buscava?” (Fédon, 63e-64a).
Portanto, a recomendação que ele não deixa de reiterar: “Que permaneça confiante em sua alma aquele que, durante a vida, rejeitou os prazeres e os bens do corpo como lhes sendo estranhos e nocivos. Aquele que amou os prazeres da ciência, que ornou sua alma, não com um adorno estranho, mas com o que lhe é próprio, como a temperança, a justiça, a força, a liberdade, a verdade, deve esperar tranquilamente a hora da partida para o outro mundo, pronto para a viagem quando o destino o chamar” (114e-115a).
Sócrates lembra continuamente: “Antes do cuidado com o corpo e com as riquezas, antes de qualquer outro cuidado, vem o da alma e seu aperfeiçoamento” (Apologia, 30b).
Em termos que se assemelham estranhamente aos do Buda, ele alerta contra os estragos que o corpo pode causar à alma quando ele a obriga a saciar seus desejos:
“Enquanto tivermos o corpo, e nossa alma estiver atolada nessa corrupção, jamais possuiremos o objeto de nosso desejo, quer dizer, a verdade. Pois o corpo nos opõe mil obstáculos pela necessidade que temos de mantê-lo”, diz ele (Fédon, 66b). Ele insiste: “O corpo nunca nos leva à sabedoria. Quem provoca as guerras, as divisões, os combates?
Apenas o corpo, com todas as suas paixões. De fato, todas as guerras vêm apenas do desejo de acumular riquezas, e somos forçados a acumulá-las por causa do corpo para servir, como escravos, às suas necessidades” (66c-d).
Todavia, Sócrates não prega nem a ascese estrita, nem o martírio do corpo (82e). O caminho que ele sugere, o mesmo que o Buda propunha, é o da “temperança, da qual a maioria só conhece o nome, virtude que consiste em não ser escravo dos desejos, mas de se pôr acima deles e viver com moderação” (68c); pois “cada sofrimento, cada prazer, tem, por assim dizer, um prego com o qual ele prende a alma ao corpo, torna-a semelhante a ele e a faz acreditar que nada é verdadeiro além do que o corpo lhe diz” (83d).
A modalidade dos renascimentos também não é fruto do acaso:
“A das almas justas são melhores, e as más, piores” (72d), diz ele, antes de explicitar melhor seu propósito: “Se a alma se retira pura, sem nada conservar do corpo, como aquela que durante a vida não teve voluntariamente com ele nenhum comércio, mas, ao contrário, tendo-o sempre evitado, e sempre se recolhido em si mesma, meditando, quer dizer, filosofando e aprendendo efetivamente a morrer, ela vai para um ser semelhante a ela, divino, imortal, cheio de sabedoria, junto ao qual ela goza de felicidade, libertada de seus erros, de sua ignorância, de seus temores, de seus amores tirânicos, e de todos os outros males ligados à natureza humana” (81a-b).
Em compensação, “se ela se retira do corpo, manchada, impura, como aquela que sempre se misturou com ele, ocupada em servi-lo, possuída por seu amor, enfeitiçada por ele a ponto de só considerar real apenas o que é corpóreo, o que se pode ver, tocar, beber, comer, ou o que serve aos prazeres do amor, ao passo que odiava, temia e fugia habitualmente de tudo o que é obscuro e invisível, de tudo o que é ininteligível e do qual apenas a filosofia possui o sentido, ela sai desorientada pelas manchas corporais que a relação contínua e a união por demais estreita que teve com ele, só preocupada com ele, tornaram naturais. Essas impurezas são um invólucro pesado, opressivo, terrestre e visível. A alma, carregada desse peso, é arrastada para este mundo visível pelo medo que ela tem do mundo invisível. E assim, “ela é privada do contato com a pureza e com a simplicidade divina” (83e).
Ele cita até mesmo alguns exemplos precisos de reencarnações possíveis: “Aqueles que amaram somente a intemperança, sem nenhum pudor, sem nenhuma medida, entram possivelmente em corpos de asnos ou de outros animais semelhantes” (81e-82 a).
Aqueles “que só amaram a injustiça, a tirania e as rapinas vão animar corpos de lobos, de falcões” (82a). Os justos, os temperantes, conhecerão um destino mais feliz em “corpos de animais pacíficos e doces” ou “em corpos humanos, para dar nascimento a homens de bem” (82ab).
Mas a proximidade post mortem com os deuses é oferecida apenas “ao verdadeiro filósofo”, aquele que “renunciou a todos os desejos do corpo”, “não se entrega às paixões”, “não teme nem a ruína, nem a pobreza”, e cuja alma “saiu do corpo com toda a sua pureza” (82c).
Este “percebe de fato que a força do laço corporal consiste nas paixões que fazem com que a alma, acorrentada a si mesma, ajude a estreitar sua corrente”.
Ele sabe que seus sentidos “são cheios de ilusões” e só lhe dão acesso ao “sensível e ao visível”, ao passo que somente sua alma “vê o que é invisível e inteligível”.
O que caracteriza esse filósofo é “trabalhar mais especialmente que os outros homens para separar sua alma do convívio com o corpo” (64e-65a). E ele não pode temer a morte que o torna “livre e liberto da loucura do corpo”, apto para conhecer, enfim, “a pura essência das coisas” (67a-b).
Sócrates mostra algo capital: para um filósofo, existem dois registros do saber — o saber propriamente racional (atualmente se diria científico) e um saber que pode ultrapassar a competência exclusiva da razão, por se originar também de outras esferas como as da fé, da intuição, do sentimento ou mesmo da tradição.
No primeiro caso, poderíamos falar de “certezas”. No segundo, falaríamos antes, como o fará Montaigne, de “íntimas convicções”. Um filósofo adquire, unicamente pela força da razão, um saber que lhe dá certezas sobre si mesmo, sobre o homem e sobre o mundo; esse saber é universal.
Ele adquire igualmente conhecimentos não exatos, porque parcialmente fundados na razão, e inspirados também por outras fontes, que se tornam íntimas convicções.
Estas podem esclarecer e alimentar sua vida. Esse saber é verdadeiro para aquele que adere a ele sem que se trate de uma verdade universal. O ensinamento socrático sobre a imortalidade da alma provém especialmente desse segundo registro.
Jesus: Ressurreição e vida eterna
Jesus anuncia com veemência, ao longo de seu discurso, que existe uma vida após a morte, um além “deste mundo perecível”, onde, simplesmente, os justos serão recompensados por suas boas ações, e os maus, punidos por seus erros.
O sermão das Bem-aventuranças exprime de modo emocionante a justiça divina que retribui o justo depois de sua morte: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra. Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. Bemaventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bemaventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bemaventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus” (Mateus, 5:3-10). E a todos os que são odiados, excluídos, insultados, Jesus diz: “Alegraivos […] e exultai, porque no céu será grande a vossa recompensa” (Lucas, 6:20- 23).
A expressão “céu” ou “Reino dos Céus” designa o mundo invisível, esse “além” impossível de se localizar, onde os justos viverão “como anjos” (Mateus, 22:30) junto de Deus.
É esse lugar misterioso e indefinível que a tradição cristã chamará de paraíso. Jesus utiliza outra expressão para falar desse mundo novo cuja vinda ele promete: o Reino de Deus.
Na conversa com o sábio Nicodemos, Jesus anuncia que não veio condenar os homens, mas lhes trazer a salvação eterna (João, 3:16-17).
À expressão “vida eterna” associa-se “ressurreição”. Jesus afirma claramente: “Sim, esta é a vontade de meu Pai: quem vê o Filho e nele crê tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (João, 6:40), remetendo, assim, à temática do Julgamento Final.
“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá” (João, 11:25-26).
Viva uma boa vida
Para além das divergências de apreciação entre o Buda, Sócrates e Jesus sobre o devir do ser humano após a morte, o ensinamento deles tende para o fato de que nossas ações presentes terão consequências numa existência futura.
Tal perspectiva pode ter repercussões importantes na maneira de conceber nossas vidas, em nossas escolhas éticas, na percepção que temos de nós mesmos.
A não ser que tenhamos fé, não podemos ter nenhuma certeza racional sobre a existência de um além ou de mundos invisíveis. Porém, como lembra com humor Sócrates, muito antes da aposta de Pascal, nada temos a perder vivendo de acordo com tal certeza.
Por isso, que tal vivermos nossa vida com base nessa certeza, da melhor forma possível, sempre praticando e cultivando o bem?
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