Esse é um livro que todo buscador espiritual deve ler. Sidarta é um romance filosófico que exalta a busca pela sabedoria e é inspirado na vida de Siddartha Gautama, fundador do budismo.
O jovem Sidarta abandona a sua casa e sua família á procura de uma vida de contemplação, visando atingir a plenitude espiritual, buscando uma compreensão mais profunda de si mesmo e mantendo-se fiel a sua própria alma.
Muitos desses eventos são paralelos às próprias experiências históricas do Buda. Hesse parece acreditar que o caminho para a iluminação é individual e experiencial, e defende a exploração da própria vida, coração e mente, em vez de seguir o caminho de alguém mais iluminado ou basear-se e ficar aprisionado em doutrinas.
Resenha Sidarta
Sidarta era filho de um Brâmane erudito, e vivia entre inúmeros sábios religiosos, numa vida elegante e confortável. Era uma criança notável, bonito, com alta vocação (já sabia os Vedas – os livros sagrados Hindus) se destacando na arte da meditação, contemplação e na eloquência – todos o admiravam e o adoravam. Era uma criança promissora.
Mas, por dentro, Sidarta estava infeliz consigo mesmo – não sentia nenhuma satisfação na sua alma, estava em descontentamento.
“Começava a sentir que nem o amor do pai, nem o da mãe, tampouco o do delicado Govinda teriam sempre e a cada momento a força de alegrá-lo, de tranquilizá-lo, de nutri-lo, de bastar-lhe. Começava a vislumbrar que seu venerando pai e seus demais mestres, aqueles sábios brâmanes, já lhe haviam comunicado a maior e a melhor parte de seus conhecimentos: começava a perceber que eles tinham derramado a plenitude do que possuíam no receptáculo acolhedor que ele trazia em seu íntimo. E esse receptáculo não estava cheio; o espírito continuava insatisfeito; a alma andava inquieta; o coração não se sentia saciado.
Nem as abluções, nem os sacrifícios e as invocações, nem todos aqueles ensinamentos religiosos estavam satisfazendo-o! Sua alma ainda encontrava-se sedenta.
Para chegar até ele, até o eu, até a mim, ao atman – haveria qualquer outro caminho que valesse a pena procurar? Aí dele!, ninguém lhe indicava tal caminho, ninguém o conhecia, nem o pai, nem os mestres e os sábios, nem os sagrados cânticos do ritual dos sacrifícios
Tudo sabiam eles, os brâmanes com seus livros santificados; tudo sabiam; com tudo se preocupavam, com tudo e ainda mais, desde a criação do mundo e a origem da fala, dos alimentos, da aspiração e da exalação até as categorias dos sentidos e as façanhas dos deuses! Sabiam inúmeras coisas, mas que valor tinha toda essa sabedoria para quem ignorasse aquilo que era uno e único, o mais importante, ao lado de qual coisa alguma tinha importância?
Todos os conhecimentos dos mais sábios encontravam-se alí reunidos, puros qual mel colhido pelas abelhas. Não, absolutamente não convinha desprezar a imensa quantidade de saber que estava alí armazenada e conservada por inúmeras gerações de brâmanes eruditos… Mas onde se achariam os brâmanes, os sacerdotes, os sábios ou os ascetas que lograssem não somente conhecer, senão também viver essa profunda sabedoria?
E entre todos os eruditos que conhecia, entre os pensadores mais sábios cujos ensinamentos lhes eram ministrados, não havia nenhum que tivesse chegado lá, pondo o pé no mundo celeste e matando a sede perene.
Por estar insatisfeito, Sidarta decide juntar-se aos samanas, ascetas peregrinos, com intuito de torna-se um deles. Pede permissão para o pai, dizendo que iria abandonar a casa, encaminhando-se aos ascetas. O pai, com resistência, acaba cedendo.
Seu amigo Govinda, que era seu admirador, resolve acompanhar Sidarta nessa nova jornada com os ascetas.
Sidarta parte com Govinda ao encontro dos samanas e pede-lhes para que sejam aceitos no grupo. Eles concordam. Daí em diante, Sidarta deu todas suas roupas (ficou com apenas uma tanga), comia uma vez por dia e jejuava por longos períodos. Fazia inúmeras práticas de auto mortificação.
Os samanas ensinavam muita coisa a Sidarta e ele aprendia numerosos métodos de se separar do eu. Trilhava a senda da desindividualização por meio da dor, do tormento voluntário e do triunfo sobre o sofrimento, sobre a fome, a sede, o cansaço. Desindividualizava-se por intermédio da meditação, tirando de seu espírito toda e qualquer imagem até deixá-lo vazio. Mas embora os caminho o afastassem do eu, ao fim sempre o reconduziam até ele (…) sempre vinha a hora em que ele era novamente Sidarta e o eu e sentia mais uma vez a tortura do ciclo de vida imposto a ele.
Porém, Sidarta começa a perceber que não estava fazendo reais progressos junto com os samanas. Ainda estava insatisfeito.
“Mas uma coisa sei, ó Govinda: em meus exercícios e em minhas meditações, eu, Sidarta, encontra apenas fugidias fases de esquecimento. E que, apesar disso, continuo tão distante da sabedoria, da salvação, quando fica um feto no ventre da mãe, disso tenho certeza.”
“Que achas Govinda? Estamos no caminho certo? Pensas que nos aproximamos do conhecimento? Chegamos mais perto da graça? Ou, quem sabe, movimentamo-nos em círculos, justamente nós que queríamos escapar do ciclo?
Sidarta faz a observação que nem mesmo o mais velho dos ascetas, que tinha 60 anos, ainda não tinha alcançado o Nirvana (extinção da individualidade, emancipação final) e percebe que se continuar no mesmo caminho, nunca iria obter a realização das realizações.
Em breve, ó Govinda, teu amigo há de afastar-se da senda dos semanas, pela qual andou, lado a lado contigo, durante muito tempo. Sinto sede, Govinda, e no curso da longa caminhada que fiz junto com os samanas minha sede não diminuiu em absoluto. Sempre almejei o conhecimento, sempre abriguei em mim grande número de perguntas. Consultei os brâmanes, ano após ano, e consultei os sagrados Vedas, ano após anos, e consultei os piedosos samanas, ano após ano. Gastei muito tempo e ainda não cheguei ao fim, apenas para aprender isto: que não se pode aprender nada! Acho que a tal coisa que chamamos “aprender” de fato não existe. Existe, sim, meu amigo, uma única sabedoria, que se acha em toda a parte. É o Atman, que está em mim e em ti e em qualquer criatura. E por isso começo a crer que o pior inimigo dessa sabedoria é a sede de saber, é a aprendizagem.
Depois de passarem por três anos juntos aos samanas, alcançou-os um boato a afirmar o surgimento de uma pessoa de nome Gotama, o Sublime, o Buda, aquele que dominara em si mesmo o sofrimento do mundo e fizera parar a roda das ressurreições – aquele que alcançou o nirvana e que nunca mais voltaria ao ciclo. das reencarnações.
Govinda, seu grande amigo, sugere que eles partam para conhecer o Ser perfeito, o tal do Gotama, para que pudessem ouvir sua doutrina. Sidarta concorda, pois já tinha perdido a esperança com os samatas:
-Muito bem, Govinda – disse. – Falaste bem, Govinda, e certas são tuas recordações. Oxalá te lembres também de outra frase que me ouviste proferir; a saber, que me tornei desconfiado com relação a ensinamentos e aprendizagens, que me cansei deles e que minha fé em palavras pronunciadas por mestres diminuiu muito. Mas apesar disso meu querido, vamo-nos!
Eles despedem-se dos samanas e vão atrás do Augusto, o Buda. Sidarta acaba encontrando o Buda, e o reconhece instantaneamente:
(…) e os dois samanas identificavam-no unicamente pela perfeição da serenidade, pela calma da aparências, que não deixava perceber nem ambição, nem vontade, nem arremedo, nem esforço, senão luz e paz.
Sidarta sentia pouca curiosidade pela doutrina do Buda – não acreditava que ela pudesse ensinar algo novo, uma vez que tanto ele como Govinda já tinham obtido frequentes informações acerca do teor dos ensinamentos de Gotama, ainda que fossem relatos de segunda ou terceira mão. Ele estava muito mais interessado em observar o próprio Buda, que era a própria doutrina viva – ela estava presente em cada um de seus gestos:
Parecia-lhe que as falanges de cada dedo dessa mão eram doutrina, falavam, respiravam, exalavam aroma, derramavam brilho da verdade. Esse homem, esse Buda, era sincero até no gesto do último dos dedos.
Govinda e Sidarta assistem o Buda expor sua doutrina:
Gotama ministrava a doutrina do sofrimento, da origem do sofrimento, do caminho a abolição do sofrimento. A vida era sofrimento, o mundo estava cheio de mágoas, mas encontrara-se a salvação capaz de livrar-nos das tristezas: acha-la-ia quem acompanhasse o caminho do Buda. Com voz suave e, todavia firme, falava o Augusto. Ensinava os quatro axiomas fundamentais, ensinava a óctupla estrada.
Após Augusto, o Buda, ter terminado de falar sua doutrina, Govinda vai falar com ele, pedindo para que o aceitasse no círculo dos discípulos. Porém, Sidarta, toma uma decisão: decide seguir o seu próprio caminho, abandonando o amigo (que resolve ficar junto com Augusto e sua doutrina):
-Govinda, meu caro, acabas de dar o passo e de escolher o caminho. Sempre foste meu amigo, ó Govinda, sempre andaste um passo atrás de mim. Frequentemente pensei: “Será que Govinda nunca dará um passo sozinho, sem mim, pela iniciativa da própria alma?” Pois é, e agora te tornaste homem e tu mesmo determinaste teu destino. Oxalá consigas chegar ao fim de tua jornada, meu querido! Que encontres a salvação!
Por mais que o Govinda tentasse convencer o companheiro para que ficasse, para dizer-lhe por que se recusava a acolher a doutrina do Gotama e que defeitos encontrava nela, isso não funcionava – Sidarta negava as súplicas do amigo, dizendo:
Sossega, Govinda! A doutrina do Augusto é excelente. Como eu poderia encontrar nela um defeito?
Sidarta acaba novamente encontrando o Buda e, antes de seguir com sua peregrinação, resolve conversar com o Homem Perfeito:
Mas, com tua licença, direi algo mais: não duvidei de ti nenhum instante. Não duvidei em absoluto que és o Buda, de que alcançaste o objetivo supremos a cuja busca se encaminharam tantos milhares de brâmanes e filhos de brâmanes. Obtiveste a redenção da morte! Ela te coube em virtude do próprio empenho, pelo método que é teu, pelo pensamento, pela meditação, pelo conhecimento, pela iluminação. Não a conseguiste através da doutrina! E… eis meu raciocínio, ó Augusto… ninguém chega a redenção mediante a doutrina!
A pessoa alguma, ó Venerável, poderás comunicar e revelar por meio de palavras ou ensinamentos o que se deu contigo na hora da tua iluminação! Ela ensina e abarca muito, a doutrina do esclarecido Buda. A numerosas pessoas indica o caminho para uma vida honesta, afastada do mal. Mas há uma única coisa que não se acha nessa doutrina, por mais clara e veneranda que ela seja. Não nos ensina o segredo daquela experiência que teve o próprio Augusto, só ele entre centenas de milhares de homens.
São esses os pensamentos e as percepções que me vieram quando ouvi a doutrina. Por isso hei de perseguir na minha peregrinação, não para ir a procura de outra doutrina melhor, pois sei muito bem que não há nenhuma; senão para separar-me de quaisquer doutrinas e mestres, a fim de que possa alcançar sozinho meu destino ou então morrer.
Talvez para algumas pessoas, a doutrina seja o sudiciente, o que elas procuram – pois traz o conforto e a segurança que necessitam, livrando-os da vida do mundo e dos prazeres. Porém, para Sidarta, doutrinas eram palavras vazias e não seria ela que provocaria a redenção do eu.
O venerável Augusto Buda, se despedindo de Sidarta, diz:
És inteligente, ó samana. Sabes falar inteligentemente, mas, meu amigo, acautela-te contra o excesso de inteligência.
Sidarta, então, promete continuar com sua jornada, se empenhando em penetrar no âmago de sua alma. Ele já não era adolescente, senão homem maduro. Ele cessara de sentir aquele desejo que o acompanhara em toda a sua juventude: desejo de ter mestres e de receber ensinamentos – tanto que ele acabara de abandonar o mestre dos mestres, o mais sábio de todos, o Santíssimo Buda:
Não me deixarei orientar nem mesmo pelo Yoga-Veda, nem pelo Atarva-Veda, nem por ascetas, nem mesmo por doutrina alguma. Aprenderei por mim mesmo; serei meu próprio aluno; procurarei conhecer-me e desvendar o segredo que é Sidarta!
Sidarta passou a enxergar o mundo de outra forma. Antes, ele estava tão obcecado com sua busca pelo Unidade, por Atman – que menosprezava a multiplicidade do mundo, com todas as suas cores e formas.
Já não ia em busca do essencial. Já não visava o além. Como era belo o mundo para quem o olhasse assim, ingenuamente, sem nada procurar nele! Tudo isso existira em todos os tempos e, todavia, escapara a Sidarta. Em todos os tempos, houvera o correr dos rios e o zumbir de abelhas, mas outrora esses fenômenos tinham-se afigurado a Sidarta como um véu falaz (..) já que nada disso era essencial e a realidade se encontrava além dos objetos visíveis. Ele não estivera presente. Nesse instante, porém, estava presente, fazia parte dos acontecimentos.
Na verdade perceberá, havia muito, que seu eu a o Atman eram uma e a mesma coisa e que tinham sua essência eterna em comum com o Brama. Mas nunca lograra achar esse eu, portanto, se empenhara em enredá-lo nas malhas do pensamento. Posto que o corpo e o jogo dos sentidos certamente não fossem o eu, não convinha tampouco identificar com ele o pensamento, a inteligência, a sabedoria assimilada ou, finalmente, a técnica de tirar conclusões e de tecer, a base de raciocínios feitos, pensamentos novos. Não!, também essa esfera do espírito ainda pertencia a este mundo. Quem matasse o eu casual dos sentidos, e, em compensação, alimentasse o eu igualmente casual do pensar e da erudição, não alcançaria nenhum objetivo. Uns e outros, os pensamentos tanto como os sentidos , eram coisas bonitas. O derradeiro significado jazia, porém, por trás de ambos. Era preciso ouvir os dois, brincar com eles, sem desprezá-los nem superestimá-los.
Sidarta segue em sua jornada e chega até uma cidade grande, alegrando-se com isso – afinal, ele viverá por muito tempo no mato, isolado de todos.
Na cidade, Sidarta encontra uma mulher, chamada Kamala. Ele pede e ela para que seja sua amiga e mestra na arte do amor:
Para dizer-te isso, sim, e para expressar sua gratidão por seres tão linda. E se minha ousadia não te desagradares, ó Kamala, gostaria de pedir-te que sejas minha amiga e mestra. Pois nada sei ainda da arte que tu exerces tão magistralmente.
Kamala diz que ele deve, primeiro, conseguir roupas melhores, sapatos melhores, mais dinheiro, além de presentes, se quisesse se envolver com ela. Sidarta pede um conselho a tal moça: para que o encaminhasse a algum lugar onde pudesse conseguir tais coisas.
Ora, meu amigo, há muita gente que gostaria de saber a resposta dessa pergunta. Terás de utilizar teus conhecimentos e conseguir que paguem teu trabalho, oferecendo-te dinheiro, roupas e sapatos. É só assim que os pobres chegam a enriquecer. Que é que saber fazer?
-Sei pensar. Sei esperar. Sei jejuar.
Sidarta sabia também, ler e escrever, coisa que poucas pessoas sabiam naquela época. Seu próximo objetivo era conseguir dinheiro e roupas!
Kamala recomenda Sidarta a um rico comerciante chamado Kamasvami. Começou a morar no lar do comerciante. Aprendeu muitas coisas novas, ganhou novas roupas, sapatos. Sidarta, porém, considerava tudo aquilo um mero jogo, cujas regras desejava aprender inteiramente, mas cujo desdobramento o deixava perfeitamente frio. Para ele, tudo aquilo era indiferente.
Ceta vez, encaminhou-se a uma aldeia a fim de adquirir grande quantidade de arroz. Quando chegou ao destino da viagem, soube que o arroz já fora vendido a um concorrente. Mesmo assim, permaneceu vários dias naquela aldeia, se divertindo. Kamasvami o repreendeu pela demora do retorno e pelo desperdício do tempo e dinheiro. Sidarta responde o seguinte a Kamasvami – nos dando uma importante lição sobre aceitação e paciência.
-Para de ralhar comigo, meu caro! Nunca ninguém conseguiu alguma coisa por meio de resmungos. Se houve prejuízo, deixa que eu arque com ele. Fiquei muito contente com o resultado dessa viagem. Conheci muita gente. Um brâmane tornou-se meu amigo. Criancinhas cavalgaram em meus joelhos. Camponeses mostraram-me seus campos. Ninguém me tomou por negociante.
-Tudo isso é muito bonito – exclamou Kamasvami, agastado. – Mas, na realidade, és negociante, acho eu! Ou fizeste essa viagem unicamente para divertir-te?
-Claro! – disse Sidarta, soltando uma gargalhada – Claro que viajei para divertir-me. Por que outra razão o teria feito? Cheguei a conhecer pessoas e regiões. Obtive gentilezas e confiança. Encontrei amizades. Olha meu amigo, se eu fosse Kamasvami, teria regressado imediatamente, a toda pressa, cheio de raiva, ao constatar que a compra não sairia. Nesse caso, o resultado da viagem seria de fato uma perda de tempo e dinheiro. Mas, assim, tive dias amenos. Aprendi alguma coisa. Alegrei-me e não prejudiquei nem a mim nem a outras pessoas por nervosismo ou precipitação. E se eu, mais uma vez, voltar aquele lugar, talvez para comprar outra colheita ou para fazer o que quer que seja, serei recebido amistosa e jovialmente por homens simpáticos. Então, elogiarei a mim mesmo, por não ter dado, naquela ocasião, nenhum sinal de mau humor ou pressa desnecessária. Sossega, pois, meu amigo, e não estragues tua saúde pela bílis!
Todos os dias ele se envolvia com Kamala, trajando belas roupas, sapatos elegantes, trazendo a ela vários presentes.
Era ali, nos braços de Kamala, que residiam nessa fase da vida o valor e o significado de sua existência, e não no escritório de Kamasvami.
Sidarta começou a perceber, que existia algo que o separava dos demais homens: seu passado de samana; Ao observar aquela existência infantil ou animalesca que levavam os seres humanos, ao mesmo tempo adorava e desprezava tal estilo de vida.
Via como labutavam, sofriam, envelheciam por causa de assuntos que não lhe pareciam valer tamanho esforço e como se empenhavam em obter dinheiro, prazeres minúsculos, honrarias insignificantes. Ouvia como se censuravam e se insultavam mutualmente, como choravam suas dores que fariam rir a um semana e notava quanto lhes custavam certas privações que um samana nem mesmo sentiria.
Sidarta começou a perceber que levava uma vida estranha, de que se limitava a fazer coisas que não passavam de um brinquedo. Assim como um malabarista brinca com suas bolas, assim brincava ele com seus negócios e com os homens que o rodeavam. Contemplava-os, divertia-se a sua custa, sem que seu coração e a fonte de sua alma participassem dessas atividades.
E momentos houve em que ele se assustou com tais pensamentos, desejando que lhe fosse dado, também a ela, participar apaixonadamente, de todo o coração, daquelas ocupações cotidianas e infantis.
Por muito tempo, Sidarta ia vivendo a vida do mundo e dos prazeres, sem todavia, pertencer a ela. Seus sentidos, quase extintos no fervor dos anos passados em companhia dos samanas, haviam voltado a agitar-se. No fundo do coração, porém, continuava, mesmo assim, sendo um samana.
O que norteava sua existência era ainda a arte de pensar, de esperar e de jejuar. Os homens do mundo, aqueles tolos, permaneciam estranhos a ela, assim como o próprio Sidarta sempre se sentia um estranho em seu meio
Os anos iam se passando e agasalhado no conforto dessa vida, Sidarta mal notava sua fuga. Era rico, possuia casa própria, dispunha de criados. Distante. quase inaudível, ficara o murmúrio da sagrada fonte que outrora jorrava bem perto dele, brotada da alma.
O mundo e a preguiça tinham tomado conta do coração de Sidarta. Em lento avanço, enchiam-lhe o espirito, que ficava lerdo, fatigado e violento. Seus sentidos, em compensação, vinham a ser muito ativos, sábios, experientes.
Sempre prosseguia sentindo-se diferente e superior a todos. Nunca cessara de observá-los um tanto ironicamente, com certo desdém sarcástico, precisamente aquele desdém com que os samanas costumavam encarar os homens do mundo.
Lentamente, também, o próprio Sidarta assimilara algo das atitudes peculiares dos homens tolos, de sua ingenuidade e de seus receios. E todavia, tinha inveja deles, tanto maior quanto mais se assemelhava. Invejava-lhes aquela única coisa que lhe faltava e que eles possuíam, a saber: a importância que logravam ligar a sua vida, a violência de suas alegrias e de seus temores, a angustiada e, todavia, doce felicidade de seus eternos desejos. Essa gente apaixonava-se ininterruptamente por si mesma, por mulheres, por filhos, por honrarias ou dinheiro, por projetos e esperanças. Ele, porém, era incapaz de aprender isso, precisamente aquela alegria infantil, aquela tolice ingênua.
Ele começou a ficar cada vez mais entediado e antipático – sua fisionomia continuava mais inteligente e espirituosa do que os outros – mas raramente estava risonha:
Uma a uma, assumia aquelas expressões que geralmente se encontram no rosto dos ricaços, os sinais de descontentamento, da morbidez, da indolência, do desânimo, da ausência de amor. Pouco a pouco, apossava-se dele o mal que acontece as almas dos ricos.
O mundo apanhara-o em suas malhas, o prazer, a cobiça, a inércia e, finalmente, também aquele vício que sempre se lhe afigurava o mais estúpido de todos: a avareza. Também a posse, os bens materiais e a riqueza haviam-se apoderado dele, cassando de representar para ele um brinquedo, uma bagatela e transformando-se em grilhões e cargas.
Ele ficou viciado no jogo de dados. Inicialmente, o que o impelia a jogar era a tristeza de sua alma – perder dinheiro, dissipá-lo, causava-lhe certa alegria mesclada de raiva.
Aquele medo, o receio terrível, angustiante, que o acossava enquanto lançava os dados, preocupado com o enorme valor da parada, aquele pavor irresistível – Sidarta adorava-o, procurava renová-lo uma e outra vez, intensificá-lo mais e mais, levá-lo ao auge, porquanto era unicamente essa sensação que ainda lhe proporcionava algo parecido com a felicidade, um quê de inebriamente, uma fagulha de elevação em meio a vida saturada, preguiçosa, insípida.
O mesmo Sidarta que jogava fora dez mil moedas numa só jogada e ainda se ria do prejuízo, tornava-se mais e mais duro, mais e mais mesquinho nos negócios. De noite acontecia-lhe de sonhar com o dinheiro!
Sidarta começou a sentir uma profunda angústia, um nojo de como sua vida estava:
Mas muito mais que todo o resto, causavam-lhe asco sua própria pessoa, os cabelos perfumados, o bafo de vinho que sua boca exalava, a flacidez e o mal estar de sua pelo. Assim como um homem empanturrado de comida e bebida prefere os espasmos do vômito aliviador, assim desejava Sidarta, nessa noite de insônia, lançar para fora de si, num imenso jato de enjoo, aqueles prazeres. aqueles hábitos, aquela vida absurda e livrar-se de si mesmo.
Durante todos esses anos, inconscientemente se esforçara, ansiara por ser uma criatura igual ás demais, igual aqueles tolos e, apesar disso, levara uma vida muito mais triste, muito mais pobre que eles, que tinham propósitos e preocupações diferentes
Sidarta percebeu que não podia mais viver daquela forma – que aquele jogo (samsara – a inquietude da vida humana, a vida de prazeres e mundana) tinha acabado para ele.
Nessa mesma noite, Sidarta abandonou seu jardim. Saiu da cidade e nunca mais voltou.
O que Sidarta ainda não sabia, era que ele tinha engravidado Kamala, em consequência do seu último contato com ela.
Sidarta caminhava pela floresta, já muito longe da cidade. Tinha certeza de uma única coisa: que nunca mais poderia voltar atrás, que essa vida que levara por muitos anos pertencia ao passado, definitivamente, que a saboreara, chupando até a última gota, até enjoar.
O que ele almejava mais que tudo era não saber nada que lhe dissesse respeito, era encontrar sossego, estar morto. Oxála que um raio se abatesse sobre ele, matando-o! Quem lhe dera que um tigre o devorasse! Ah, se houvesse um vinho, um veneno que conseguisse atordoá-lo! Existia, por acaso, alguma sordidez com que ele se não houvesse poluído, alguma tolice, algum pecado, que se tivesse omitido de cometer, algum vazio da alma jamais experimentado por seu espírito?
Sim, ele Sidarta, estava no fim. Não se lhe descortinava outra solução que não a de extinguir-se a si mesmo, de quebrar o malogrado molde de sua existência.
Ele estava decidido de acabar com sua própria vida, quando de repente, um som começou a vibrar nele, vindo de épocas passadas, de regiões longínquas de sua alma. Era a velhíssima palavra inicial e final de todas as orações do bramanismo, o sagrado Om, que significa o Perfeito ou a Perfeição. – e logo que ouvia o Om a ressoar em seu íntimo, seu espírito, bruscamente acordado do sono, percebeu a estupidez do ato que iria cometer.
E, ao mesmo tempo, voltava-lhe o conhecimento do Brama, da indestrutibilidade da vida, das coisas divinas de que se esquecera. Ele acaba adormecendo. Ao acordar, enxergou o mundo como um recém nascido. Percebeu que tinha um monge perto dele – e logo viu que era Govinda, seu amigo. Eles travam um diálogo:
-E agora, ó Sidarta, que és agora?
-Não sei. Ignoro-o da mesma forma que tu. Apenas vou caminhando. Tenho sido um ricaço, mas cessei de Sê-lo. Não faço nenhuma ideia do que serei amanhã.
-Perdeste tua fortuna?
-Perdi-a ou talvez ela tenha perdido a mim. Minha fortuna sumiu. A roda das configurações gira depressa, amigo Govinda. Onde ficou o brâmane Sidarta? E o samana Sidarta? E onde está o ricaço Sidarta? As coisas efêmeras mudam rapidamente, meu caro Govinda. Bem o sabes.
Depois de se despedirem, Sidarta começa a pensar e refletir sobre sua vida (coisa que já não fazia a muito tempo – pois estava sempre entretido em prazeres). Ele percebe que aquela fase de sua vida, em que esteve envolvido no mundo das formas e sensações – foi essencial para sua jornada – ele provou tudo o que tinha que provar nesse mundo! Ele explorou tudo o que esse mundo tinha a dar. Ele teve de experimentar tudo isso para o que um novo Sidarta pudesse florescer, morrendo para todo seu passado.
Nos anos duros, laboriosos, de sua juventude, Sidarta assimilara essas três artes, só elas. Mas depois as perdera. A essa altura, nenhuma delas pertencia-lhe: nem a arte de jejuar, nem a de esperar, nem a de pensar. Ele as trocara pelo que havia de mais vil e de mais efêmero no mundo, pelo prazer dos sentidos, pela vida amena, pelos bens materiais!
“A vida que levei foi deveras curiosa” – pensou – “e conduziu-me por caminhos estranhamente tortuosos. Quando menino, só tive que lidar com deuses e sacrifícios. Quando adolescente, preocupei-me exclusivamente com o ascetismo, com a filosofia, com a meditação, indo em busca do Brama e reverenciando o que há de eterno no Atman. Quando jovem, porém, acompanhei os penitentes; morei na selva; suportei o frio e o calor, aprendi a aguentar a fome. mortifiquei meu corpo. A seguir, ocorreu-me o maravilhoso encontro com a doutrina do grande Buda e, através dela, cheguei ao conhecimento; senti que a percepção da Unidade do Universo circulava em mim como meu sangue. Mas coube-me abandonar o Buda e sua sublime doutrina. Fui até Kamala e graças a ele enfadonhei-me nas delícias do amor; com Kamasvami, estudei o comércio; acumulei dinheiro, esbanjei dinheiro; habituei-me a adorar o meu estômago e a adular meu sentidos. Era preciso que eu vivesse assim por longos anos, sacrificando meu espírito, esquecendo a arte de pensar, olvidando a unidade. Não parece de fato que, lentamente, trilhando estradas sinuosas, transformei-me de homem a criança e de filósofo a tolo? E todavia, acho que esses desvios me fizeram um grande bem. O pássaro que antigamente cantava em meu peito não morreu ainda. Mas que jornada extraordinária! Careci passar por tamanha insensatez, por tantos vícios e erros, por um sem-número de desgostos, desilusões, tristezas, só para voltar a ser criança e começar de novo. E apesar de tudo isso, fiz bem agindo dessa forma. Meu coração está de acordo e meus olhos enxergam aquilo com prazer. Coube-me em sorte o pior desespero. Foi necessário que me degradasse até o mais estúpido de todos os propósitos e pensasse no suicídio, para que me acontecesse a graça, para que eu ouvisse novamente o Om, para que me fosse dado dormir com calma e acordar refeito. Tive de pecar para que pudesse tornar a viver.
“Provar tudo quanto se necessita conhecer! Em criança, aprendi que a riqueza e os prazeres mundanos não nos trazem nenhum proveito. Há muito tempo sabia disso, mas somente agora cheguei a assimilar essa sabedoria. Hoje me compenetrei nela. Possuo-a não só na memória, senão nos olhos, no coração, no estômago. É uma benção ter-se essa certeza.”
Não era a própria personalidade, o eu mesquinho, angustiado, orgulhoso, com o qual travara uma luta de longos anos, que uma e outra vez triufara sobre ele, que sempre ressuscitara, por mais que ele o abatesse, que lhe vedara a felicidade e incutira o medo? O que encontrara a morte, atém que enfim, nessa selva, na ribeira desse belo rio, não seria justamente esse eu? E não o reconduzirá essa mesma morte ao estado de criança, inspirando-lhe plena fé, livrando-o de qualquer temor, enchendo-o de júbilo?
Nesse instante, Sidarta começava a vislumbrar o motivo por que não conseguira vencer aquele eu, nem como brâmane, nem como penitente. O que impedira fora o excesso de erudição, de versículos sagrados, de rituais, de sacrifícios, de ascetismo, de atividades e ambições. Sempre se pavoneara com altivez,; sempre quisera ser o mais inteligente, o mais zeloso; sempre se empenhara em tomar a dianteira; sempre se exibira nos papéis de sábio, de sacerdote e filósofo. Nesse sacerdócio, nessa altivez, nessa erudição, infiltrava-se seu eu; ali se arraigara, crescera, enquanto ele, Sidarta, acreditava tê-lo aniquilado por meio de jejuns e mortificações. A essa altura, porém, redescobriu-o e também percebeu que a voz secreta tivera razão e que nenhum mestre jamais teria sido capaz de salvá-lo. Por isso, fora inevitável que ele se encaminhasse para o mundo para perder-se na busca de prazeres, poder, de mulheres, de dinheiro, e que se tornasse, sucessivamente, comerciante, jogador de dados, beberrão e avarento, até que o sacerdote e o samana que nele houvera estivessem mortos.
Sidarta era efêmero, como efêmeras seriam quaisquer configurações. Nesse dia, porém, o novo Sidarta sentia-se jovem, era criança outra vez, estava cheio de alegria.
O novo Sidarta avista um rio, e decide ficar perto dele e procurar o balseiro, que outra vez o ajudará – quando foi visitar o Augusto Buda.
Como ele adorava aquelas águas! Estava encantado por elas. Sentia-se grato. Notava que em seu coração a voz tornava a falar. Despertada do sono, dizia-lhe: “Ama as águas! Não te afastes delas! Aprende o que te ensinam! Quem entendesse a água e seus arcanos -assim lhe parecia, compreenderia muitas outras coisas ainda, muitos mistérios, todos os mistérios.
O balseiro chamava-se Vasudeva, um homem misterioso, gentil, de grande compaixão e serenidade. Sidarta, que simpatizava com aquele homem, começa a morar com ele, ajudando-o nas navegações. Vasudeva, dizia que tudo o que ele havia aprendido, foi aquele rio que tinha ensinado:
Quem me ensinou a escutar foi o rio e ele será teu mestre também. O rio sabe tudo e tudo podemos aprender com ele.
Passaram-se meses e cada vez mais Sidarta aprendia – principalmente com o rio!
Contudo, muito mais do que Vasudeva pudesse ensinar-lhe, ensinava-lhe o rio. Sem cessar, Sidarta aprendia com ele. Antes de mais nada, aperfeiçoava-se na arte de escutar, de prestar atenção, com o coração quieto, com a alma receptiva, aberta, sem paixão, sem desejo, sem preconceito, sem opinião.
-Dize-me se o rio também te comunicou o misterioso fato de que o tempo não existe? – perguntou-lhe Sidarta, certa vez.
-Sim, Sidarta – respondeu. – Acho que te referes ai fato de que o rio se encontra ao mesmo tempo em toda a parte, na fonte tanto como na foz, nas cataratas e na balsa, nos estreitos, no mar e na serra, em toda a parte, ao mesmo tempo; de que para ele há apenas o presente, mas nenhuma sombra de passado nem de futuro.
-Isso mesmo – tornou Sidarta. – E quando me veio essa percepção, contemplei minha vida, e ela também era um rio. O menino Sidarta não estava separado do homem Sidarta e do ancião Sidarta, a não ser por sombras, porém, nunca por realidades. Tampouco eram passado os nascimentos anteriores de Sidarta, como não fazia parte do porvir sua morte, com o retorno ao Brama. Nada foi, nada será; tudo é, tudo tem existência e presente.
(…) Ah, sim! Todo o sofrimento pertencia ao tempo, da mesma forma que todos os receios e tormentos com que as pessoas afligiam a si próprias. Todas e quaisquer dificuldades, tudo quanto houvesse de hostil no mundo sumiria, cairia derrotado, logo que o homem triunfasse sobre o tempo, logrando arredá-lo pelo pensamento.
Passaram-se anos dessa forma. Um dia, porém, chegaram alguns monges peregrinos, adeptos do Buda e que desejavam atravessar o rio. Souberam que Augusto, acometido de doença fatal, corria perigo de passar em breve por sua derradeira morte.
Dentre esses monges, certa vez, veio também Kamala, que procurava abrigo na doutrina do Buda – este que estava prestes a morrer. Ela trazia consigo seu filho que teve com Sidarta – um menino que era teimoso e mimada, acostumado a impor sua vontade sobre a mãe.
Kamala, durante a viagem, acaba sendo mordida por uma cobra venenosa. Vasudeva, que ouviu os gritos do filho e da mulher, corre para ajudá-los. Ele os leva até sua cabana, onde Sidarta se encontrava. Sidarta reconhece Kamala e percebe, também, que o menor era o seu filho!
-Agora noto que também teus olhos mudaram. Ficaram totalmente diferentes. E, contudo, reconheço que ainda és Sidarta. Por quê? Tu és e não és Sidarta.
Kamala acaba morrendo e Sidarta decide ficar com seu filho, junto a Vasudeva.
-Ocorreu-te uma desgraça, mas vejo, ó Sidarta, que nenhuma tristeza entrou em teu coração.
-Não, meu caro, por que deverias eu estar triste? Eu, que já andava rico e feliz, agora me tornei mais rico, mais feliz ainda. Meu filho me foi dado de presente.
Pouco a pouco, Sidarta foi se dando conta de que aquele rapazinho de 11 anos era uma criança mimada, apegada a mãe, criada na opulência, acostumada a comer pratos finos, a dormir numa cama fofa e a mandar nos serviçais. Via que uma pessoa entristecida, habituada ao luxo, simplesmente não podia conformar-se de um dia para o outro com a pobreza e com um ambiente estranho. Esperava conquistá-lo lentamente, pela paciência e pela gentileza.
O tempo passava e o menino continuava sombrio e renitente, mostrando-se sempre teimoso e altivo. Não queria trabalhar e não demonstrava nenhum respeito aos dois anciões. Eis que Sidarta começou a compreender que o filho não lhe trouxera ventura e paz, senão mágoas e preocupações e, todavia, amava-o.
Por muito tempo Sidarta prosseguiu esperando que o menino o compreendesse, que aceitasse eu amor, que talvez o retribuísse. Vasudeva, então foi conversar com o Sidarta, aconselhando-o que talvez o lugar do filho não era ali junto com eles:
Mas serei capaz de separar-me dele? Concede-me mais um pouco de tempo, meu caro! Estás vendo como luto, como me esforço por conquistar o coração do menino pelo carinho, pela paciência, pela doçura. Tomara que o rio um dia dirija sua palavra também a ele. Esse menino tem a mesma vocação que nós.
-Ah, sim! Também ele tem vocação, também ele é parte da vida eterna. Mas sabemos nós, tu e eu, do destino que o aguarda, do caminho que lhe caberá trilhar, das ações que ele deverá realizar e dos sofrimentos que o acometerão? Os desgostos que lhe estão reservados não serão pequenos, uma vez que o coração desse rapaz é duro e altivo. Pessoas de sua espécie têm de padecer muitas amarguras, já que erram frequentemente, cometem pecados graves e carregam muita culpa na consciência..
Vasudeva sugere a Sidarta para leva-lo a cidade e deixá-lo na casa que pertencia a mãe, aos cuidados dos criados.
-Mas olha! Como posso abandonar ao mundo esse menino, em cuja alma não há nenhuma ternura? Não se tornará ele um presunçoso? Não se perderá em prazeres e ambições de poder? Não repetirá todos os erros do pai? Não se extraviará irremediavelmente no Sansara?
-Achas realmente que cometeste tuas tolices, a fim de poupá-las a teu filho? Julgas-te capaz de proteger o pequeno contra o Sansara? De que modo? Por meio de ensinamentos, de preces, de admoestações? Ora, meu querido, esqueceste por completo uma história que me contaste aqui mesmo, em outra ocasião; a edificante história de um filho de brâmane que se chamava Sidarta? Quem resguardou esse Sidarta do Sansara, do pecado, da avareza, da insensatez? A piedade do pai, as exortações dos mestres, a própria erudição, as pesquisas que ele fazia: nada disso conseguiu servir-lhe de esteio. Que pai, que mestre poderia evitar que Sidarta vivesse sua vida sujando-se com ela, caindo em culpa e bebendo sozinho a poção amarga, antes de descobrir seu caminho pelas próprias forças? Pensas que alguém possa escapar a busca desse caminho?
Sidarta, porém, era incapaz de seguir o conselho do amigo. Não podia separar-se do filho – mesmo que este o maltratasse e menosprezasse.
Mas desde que surgira o filho, também ele, Sidarta, transformava-se num homem tolo, que sofria por causa de outra pessoa, que se agarrava a um ente querido, que andava perdido de amor, que, em razão dessa afeição, se convertera num imbecil.
Certamente, percebia Sidarta, esse amor, esse abandono cego ao filho, não passava de uma paixão, que havia nela algo muito humano, que era Sansara. Mas sabia, ao mesmo tempo, que aquilo tinha valor, que emanava do seu próprio ser. Cabia-lhe expiar também essa delícia, saborear também esses tormentos, cometer também essas tolices.
O menino acaba fugindo da casa, roubando a balsa e o dinheiro dos anciões. Sidarta pede ajuda a Vasudeva para que construam uma jangada para que ele possa ir atrás de seu filho. Vasudeva diz o seguinte:
Pois não, vamos construir uma jangada – assim recuperaremos a balsa que o garoto surripiou. Mas quanto a ele mesmo, meu amigo, melhor seria que o deixasses escapulir. Ela já não é criança. Sabe defender-se. Teu filho procura o caminho que o conduza a cidade e faz muito bem; não te esqueças disso! Ele apenas faz o que te omitiste a fazer. Cuida de ti mesmo. Segue tua própria rota (…) Não estas compreendendo que teu filho te pede que não o sigas?
Sidarta porém, saiu a procura do filho. No caminho, começa a refletir que na verdade não se preocupava com o filho, uma vez que no âmago do coração tinha certeza que este nem pereceria, tampouco corria perigo. Mesmo assim, caminhava sem cessar e já não o fazia na intenção de salvar o garoto, senão exclusivamente para, revê-lo pela última vez.
Ele acabou compreendendo a tolice da ânsia que o arrastara até aquele lugar. Compreendia que não podia ser útil ao filho e não devia apegar-se a ele.
Sidarta continuou a transportar pelo rio numerosos viajantes. Já não enxergava a si mesmo como superior aos demais “homens comuns”:
Quando conduzia passageiros ordinários, homens tolos, negociantes, guerreiros, mulherio, esses seres já não lhe afiguravam estranhos. Ele os compreendia. Compreendia sua existência jamais orientada por raciocínio e percepção, senão exclusivamente por instinto e desejo. Tomava parte dela. Sentia-se igual a eles (…) A vaidade, a cupidez, o ridículo que os dominava perdiam para ele sua comicidade, encontravam explicação, tornavam-nos até mesmo dignos de respeito. O amor cego que a mãe tributasse ao filho; o orgulho estúpido, obcecado de que um pai presunçoso se enchesse em face do filhinho único; o desejo desvairado, furioso, de possuir joias, de ser admirada pelos homens – todos esses instintos, todas essas infantilidades, ambições e ânsias, impulsos simples, irracionais porém invencíveis na desmedida força e na pujante vitalidade, cessavam de apresentar-se aos olhos de Sidarta como mera criancice. Ele chegara a entender que os seres humanos viviam em função dessas coisas e que justamente elas os capacitavam para proezas incríveis, permitindo-lhes fazer guerras, empreender viagens, suportar tudo e resistir a sofrimentos. Aquela gente, com sua lealdade cega, com seu vigor e sua tenacidade, merecia carinho e admiração. Nada lhe faltava. O sábio, o filósofo superava-a apenas num único e minúsculo pontinho, numa só coisinha de nada; a saber, a consciência que ele obtivera da unidade de toda a vida. Em todos os demais assuntos, os homens comuns igualavam-se aos sábios e, frequentemente, lhes eram bastante superiores.
Lentamente desabrochava e amadurecia no espírito de Sidarta a percepção, o conhecimento daquilo que na verdade significava sabedoria e devia ser a meta de suas buscas prolongadas. Nada era senão uma predisposição da alma, a faculdade, a arte secreta de conceber, a cada instante, em plena vida, a ideia da unidade, de sentir a unidade, de encher dela os pulmões.
Sidarta porém, ainda sofria com a partida do filho. A ferida continuava a arder. Um dia, quando a ferida o torturava mais do que nunca, transpôs o rio, acossado pela angústia. A ferida ainda não se transformara em flor. Ele acabava voltando para a cabana, junto com Vasudeva. Ele expos tudo a Vasudeva, não omitiu nada: sobre suas lutas internas, sua inveja dos homens tolos, seus desejos tolos – ele exibiu toda sua ferida a seu amigo.
Expor sua ferida a uma pessoa que soubesse ouvir como só Vasudeva sabia fazê-lo era como se a lavasse no rio, ate que cessasse de arder e se unisse com a água. Enquanto prosseguia a fala, revelando mais e mais segredos, abrindo-se sem nenhuma restrição. Sidarta reconhecia com crescente. Sidarta reconhecia com crescente clareza que aquele ente o escutava, imóvel, já não era Vasudeva, já não era nenhum ser humano. Sim, esse vulto imutável era o próprio rio, era Deus mesmo, era a Eternidade. E enquanto Sidarta cessava de pensar em si e em sua ferida, apossava-se dele a certeza da transformação que se passara com Vasudeva. Quanto mais se convencia dela, tanto mais entrava no cerne, mais claramente via que tudo era natural, que tudo estava na mais perfeita ordem, que Vasudeva fora assim havia muito, desde sempre, talvez. Só ele não se dera conta desse fato.
Sua ferida desabrochava como uma flor. Sua mágoa fulgia. Seu eu incorporava na unidade.
Foi nessa hora que Sidarta cessou de lutar contra o destino. Cessou de sofrer. Em seu rosto florescia aquela serenidade do saber, á qual já não se opunha nenhuma vontade, que conhece a perfeição, que está de acordo com o rio dos acontecimentos e o curso da vida; a serenidade que torna suas as penas e as ditas de todos, entregue a corrente, pertencente a unidade.
Vasudeva, ao mirar os olhos do amigo e descobrir nele a serenidade do saber, diz:
-Esperei, meu caro, que esta hora viesse um dia. Agora que ela veio, deixa que me vá. Durante algum tempo ansiei por ela. Por longos anos tenho sido Vasudeva, o balseiro. Agora basta. Adeus, cabana! Adeus, rio! Adeus, Sidarta!
Passado um tempo, Govinda ouviu falar de um balseiro idoso (Sidarta), que morava junto ao rio, a qual o povo considerava um sábio. Govinda escolhe pegar a estrada para encontrá-lo. Estava curioso para conhecer esse velho, pois muito embora tivesse passado toda a vida em obediência aos regulamentos e os monges mais jovens lhe tributassem o respeito que mereciam sua idade e sua modéstia, jamais se tinham extinguido na sua alma a inquietação e o afã da pesquisa.
Govinda encontra o balseiro (sem ainda perceber que era Sidarta) e ele travam um dos últimos diálogos do livro:
Sempre te mostras muito gentil para com os monges e com os peregrinos. Já transportasse ao longo do rio grande número dos nossos. Mas dize-me, ó balseiro, não serás também tu daqueles que procuram o caminho certo?
-Mas, como, ó venerável? Ainda andas em busca do caminho?
-É verdade que sou velho – admitiu Govinda. – Mas nunca cessei de pesquisar. Parece que será meu destino jamais abandonar a busca. Tenho a impressão de que também tu procuraste a senda. Não me queres revelar algo a esse respeito, me prezado amigo?
-Que poderia eu dizer-te, ó reverendo? Só talvez que procuras demais, que de tanta busca não tens tempo para encontrar alguma coisa.
Por quê? – perguntou Govinda.
Quando alguém procura muito – explicou Sidarta – pode facilmente acontecer que seus olhos se concentrem exclusivamente no objeto procurado e que ele fique inacessível a tudo e a qualquer coisa porque sempre só pensa naquele objeto e porque tem uma meta, que o obceca inteiramente. Procurar significa ter uma meta. Mas achar significa estar livre, abrir-se a tudo, não ter meta alguma. Pode ser que tu, ó Venerável, sejas realmente um buscador, já que, no afã de te aproximares de tua meta, não enxergas certas coisas que se encontram bem perto dos olhos.
Govinda, ainda não entendia tudo aquilo, mas reconheceu o amigo! Viu que era Sidarta!
Sidarta convida Govinda a passar uma noite em sua cabana. Este aceita. No dia seguinte, depois de descansarem, Govinda disse:
-Antes de prosseguir em minha jornada, permite-me mais uma pergunta, ó Sidarta: tens alguma doutrina? Algum credo? Algum conhecimento que te oriente e te ajude a viver praticando o Bem?
-Ora, meu caro amigo, tu sabes muito bem que já na mocidade, naqueles dias que passamos na floresta, em companhia dos ascetas, cheguei a desconfiar de doutrinas e professores, a tal ponto que lhes virei as costas. E assim me conservei.
-(…) Mas supondo que não tenhas descoberto doutrina alguma pelo próprio esforço, não achaste, pelo menos, certas ideias e percepções que sejam tuas e facilitem a existência? Se me dissesses algo sobre elas, alegrarias meu coração.
-Na verdade, me vieram algumas ideias – respondeu Sidarta – e de quando em quando tive percepções. Ocorreu-me as vezes sentir, por uma hora e mesmo durante um dia inteiro, a presença do saber em meu íntimo, assim como sentimos o pulso da vida no coração. Certamente refleti sobre muita coisa, mas seria difícil para mim transmitir-te meus pensamentos. Olha, meu querido Govinda, entre as ideias que se me descortinaram encontra-se esta: a sabedoria não pode ser comunicada. a sabedoria que um sábio quiser transmitir sempre cheirará a tolice.
-Estás brincando?- perguntou Govinda.
-Não brinco, não. Digo apenas o que percebi. O conhecimento pode ser transmitido, mas nunca a sabedoria. Podemos achá-la; podemos vivê-la; podemos consentir em que ela nos norteie; podemos fazer milagres por intermédio dela. Mas não nos é dado pronunciá-la e ensiná-la. Este fato, já o vislumbrei ás vezes, na juventude. Foi ele que me afastou dos mestres. Uma percepção me veio, ó Govinda, que talvez se te afigure novamente como uma brincadeira ou bobagem. Reza ela: “O oposto de cada verdade é igualmente verdade.” Isso significa: uma verdade só poderá ser comunicada e formulada por meio de palavras quando for unilateral. Ora, unilateral é tudo quanto possamos apanhar pelo pensamento e exprimir pela palavra. Tudo aquilo é apenas um lado das coisas, não passa de parte, carece de totalidade, está incompleto, não tem unidade. Sempre que o augusto Gotama, em suas aulas, nos falava do mundo era preciso que o subdividisse em Sansara e Nirvana, em ilusão e verdade, em sofrimento e redenção. Não se pode proceder de outra forma. Não há outro caminho para quem quiser ensinar. Mas o próprio mundo, o ser que nos rodeia e existe em nosso íntimo, não é nunca unilateral. Nenhuma criatura humana, nenhuma ação é inteiramente Sansara nem inteiramente Nirvana. Homem algum é totalmente santo ou totalmente pecador. Uma vez que facilmente nos equivocamos, temos a impressão de que o tempo seja algo real. Não, Govinda, o tempo não é Real, como verifiquei em muitas ocasiões. E se o tempo não é real, não passa, tampouco, de ilusão aquele lapso que nos parece estender-se entre o mundo e a eternidade, entre o tormento e a bem aventurança, entre o bem e o mal.
-Mas como? – perguntou Govinda.
-Presta atenção, meu querido, muita atenção! O pecador que eu sou, e que tu é, é pecador, mas um dia voltará a ser Brama. Em determinado momento alcançara o Nirvana e será o Buda. Mas olha bem: esse “um dia” é apenas uma ilusão, um termo convencional. O pecador não se encontra a caminho do estado de Buda; não está em plena evolução muito embora nosso cérebro seja incapaz de imaginar as coisas de outro modo. Pelo contrário, no pecador já se acha contido, hoje, agora mesmo, o futuro Buda. Todo o seu porvir já está presente. Tu deves respeitar na pessoa desse pecador, na própria pessoa, na de qualquer homem, o Buda em botão, o Buda possível, o Buda oculto. O mundo, amigo Govinda, não é imperfeito e não se encaminha lentamente rumo a perfeição. Não! A cada instante é perfeito. Todo e qualquer pecado já traz em si a graça.
(…) Sei amar uma pedra, ó Govinda, e também uma árvore ou um pedacinho de casca. São coisas, e coisas podem ser amadas. Mas não posso amar palavras. Por isso não me servem doutrinas. Talvez seja essa a razão por que não encontrares a paz: o excesso de palavras. Pois Govinda, também a redenção e a virtude, o Sansara e o Nirvana são meras palavras. Não existe coisa alguma que seja Nirvana. O que existe é apenas a palavra Nirvana.
Respondeu Govinda:
-Não, não, meu amigo, Nirvana não é apenas uma palavra. É uma ideia.
Mas Sidarta prosseguiu:
-Uma ideia. Pois não. Confesso-te, meu caro, que não faço muita distinção entre palavras e ideias. Para falar com toda a franqueza: não dou grande importância as próprias ideias. As coisas têm para mim muito maior significado.
Replicou Govinda:
-Mas, dize-me: aquilo que chamas de coisas é mesmo algo real, algo essencial? Não será apenas uma ilusão de Maia, simples miragem, pura aparência? Essa tua pedra, tua árvore, teu rio são ou não realidades?
-Esse problema – disse Sidarta – não me preocupa. Quanto a mim, as coisas podem ser mera aparência, uma vez que, nesse caso, também sou aparência e assim serão elas sempre meus iguais. Eis o que as torna para mim tão caras e veneradas: são como eu; Por isso, posso amá-las. E com isso, te comunico uma doutrina que te fará rir, ó Govinda: tenho para mim que o amor é o que há de mais importante no mundo. Analisar o mundo, explicá-lo, menosprezá-lo, talvez caiba aos grandes pensadores. Mas a mim interessa exclusivamente que eu seja capaz de amar o mundo, de não sentir desprezo por ele, de não odiar nem a ele nem a mim mesmo, de contemplar ele, a mim, a todas as criaturas com amor, admiração e reverência.
Também com relação a Ele, teu grande mestre, as coisas têm, a meu ver, mais valor do que as palavras. O gesto de sua mão me importava mais do que suas opiniões. Não é em seus discursos e em suas ideais que se me depara sua grandeza, senão unicamente em seus atos e em sua vida.
Govinda, depois de ouvir as palavras de Sidarta, diz para ele:
-Sidarta! Ficamos velhos. É pouco provavel que nos tornemos a ver sob esta forma de nossa existência. Vejo meu querido, que encontraste a paz, Confesso que não consegui localizá-la. Dize mais uma palavra, o Venerando. Dá me algo que possa levar comigo, alguma coisa que me seja possível entender a assimilar durante minha jornada. Olha, Sidarta, esse meu caminho é ás vezes bastante laborioso e sombrio.
Acerca-te de mim! soprou ao ouvido de Govinda. Inclina-te mais! Mais ainda. Chega-te para bem perto de mim! E agora me dá um beijo na testa, ó Govinda!
Quando Govinda beija seu amigo, algo surpreendente acontece:
Govinda já não enxergava o semblante de Sidarta, seu companheiro. Em vez dele via outros rostos, inúmeros, toda uma fila, uma torrente de rostos, centenas, milhares, que todos eles apareciam, sumiam e, todavia, davam a impressão de estar presente simultaneamente, rostos que a cada instante se modificavam e renovavam e, contudo, eram sempre Sidarta. (…) Mas por cima deles, sem exceção, estendia-se uma pequena camada irreal e todavia existente, qual tênue chapa de vidro ou de gelo, camada transparente, casca, molde, máscara de água. Pois essa máscara morria e essa máscara era o rosto risonho de Sidarta, que ele, Govinda, nesse momento, tocava com os lábios. E Govinda percebeu que esse sorriso da máscara, o sorriso da unidade acima do fluxo das aparência, o sorriso da simultaneidade muito além do sem número de nascimentos e mortes, o sorriso de Sidarta, era idêntico aquele sorriso calmo, delicado, indevassável, talvez bondoso, talvez irônico, de Gotama, o Buda, tal como ele próprio o observara centenas de vezes com profundo respeito. Era assim – o Govinda o sabia – que sorriam os seres perfeitos.
Govinda, então, curvou-se em genuína reverência e gratidão pelo amigo:
Profundamente, até ao chão, Govinda inclinou-se diante de Sidarta, que se conservava sentado, imóvel, e cujo sorriso chamava a memória do amigo a tudo quanto ele amara no curso da vida, tudo quanto já se lhe afigurara precioso e sagrado.
E assim, termina essa magnífica obra de Herman Hesse!
Nele, não apenas cheguei a uma melhor compreensão intelectual do que significa seguir o caminho da Verdade, mas também encontrei a coragem de seguir meu próprio e único caminho, de experimentar tudo o que pode surgir nele – o bem , o ruim, o feio – totalmente, e, da melhor maneira que posso.
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