A Carta sobre a felicidade, escrita por Epicuro, para além de sua significação intrínseca, não deixa de ser um documento decisivo para desfazer aquele equívoco que uma tradição apressada costuma associar a doutrina epicurista, quase sempre confundida com o gozo imoderado dos prazeres humanos, como se não se distinguissem do hedonismo puro e simples.
Além das explícitas menções ao contrário, que o próprio texto da carta não deixa de registrar, são inúmeros testemunhos fidedignos que atestaram que no “jardim de Epicuro” vicejava uma autêntica comunidade, onde mestres e discípulos viviam quase de maneira ascética. Nesse sentido, essa carta é útil para repor as coisas em seus devidos lugares.
A carta sobre a felicidade versa sobre a conduta humana, tendo em vista alcançar a tão almejada “saúde de espírito”.
Inicia-se esta carta por uma decidida exortação ao exercício da filosofia, considerada desde logo como uma disciplína cuja única meta é justamente tornar feliz o homem que a pratica, de tal modo que este deve cultivá-la durante todo o transcurso de sua existência, desde a mais tenra juventude até a idade mais avançada. Como ele diz em sua carta:
“Que ninguém hesite em se dedicar a filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde de espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se a filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz.
Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, ja que, estando essa presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la.“
O filósofo passa, então, a falar sobre os tópicos que considera essenciais para essa busca permanente da felicidade. Depois, ele fala sobre a morte – dizendo ser absolutamente necessário vencer esse medo da morte; ninguém deve temê-la, uma vez que não há nenhuma vantagem em viver para sempre – o que importa não é a duração, mas a qualidade de vida.
Em seguida, ele fala sobre as varias modalidades de desejos, acompanhada pela necessidade impetuosa de controlá-los, tendo em mira tanto a saúde do corpo quanto a tranquilidade do espírito, o que, por outro lado, não deixa de ser uma boa definição do próprio prazer – tal como Epicuro o concebe. Ele diz o seguinte em sua carta:
“Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros para o bem estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda a escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que essa é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim, praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo.
Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo, não tendo que ir em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir.“
O prazer, como bem principal e inato, não é algo que deva ser buscado a todo custo indiscriminadamente, já que as vezes pode resultar em dor. Do mesmo modo, uma dor nem sempre deve ser evitada, já que pode resultar em prazer. De qualquer maneira, recomenda-se uma postura comedida em relação aos prazeres. Ele diz:
“Não são pois bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda a escolha e toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta de espíritos.
“Embora o prazer seja o nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo o prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas.
De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas a felicidade, e a felicidade é inseparável delas.“
Esses são alguns pontos centrais sobre os quais Epicuro exorta Meneceu, garantindo que a prática correta de tais ensinamentos será capaz não só de levá-lo a mais completa felicidade, mas até mesmo a sentir-se como um deus imortal entre os homens mortais.
Eis a seguir a carta sobre a felicidade que Epicuro escreveu a Meneceu, não deixe de ler!
Carta sobre a felicidade a Meneceu
“Que ninguém hesite em se dedicar a filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde de espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se a filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz.
Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, ja que, estando essa presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la.
Pratica e cultiva então aqueles ensinamentos que sempre te transmiti, na certeza de que eles constituem elementos fundamentais para uma vida feliz.
Em primeiro lugar, considerando a divindade como um ente imortal e bem aventurado, como sugere a percepção comum de divindade, não atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem inadequado a sua bem aventurança; pensa a respeito dela tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade.
Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles fez a maioria das pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses. Ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria.
Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas próprias virtudes, eles só aceitam a convivência com os seus semelhantes e consideram estranho tudo o que seja diferente deles.
Acostuma-te a ideia de que a morte, para nós não é nada, visto que todo o bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo da imortalidade.
Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo, portanto, quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque lhe aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos.
A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como o descanso dos males da vida.
O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele viver não é um fardo e não viver não é um mal.
Assim como ele opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve.
Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de agradável para ambos, mas porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em honestamente viver e em honestamente morrer. Mas, pior ainda, é aquele que diz: bom seria não ter nascido mas, uma vez nascido, transpor o mais depressa possível as portas para Hades.
Se ele diz isso com plena convicção, por que não se vai desta vida? Pois é livre para fazê-lo, se for esse realmente seu desejo; mas se o disse por brincadeira, foi um frívolo em falar de coisas que brincadeira não admitem. Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não-nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais.
Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros para o bem estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda a escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que essa é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim, praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo.
Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo, não tendo que ir em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir.
É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha e recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção prazer e dor.
Embora o prazer seja o nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo o prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas.
Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.
Consideramos ainda a autossuficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.
Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita.
Habituar-se as coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portanto, não só é conveniente para a saúde, como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida: nos períodos em que conseguimos levar uma existência rica, predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar sem temor as vicissitudes da sorte.
Quando, então, dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é a ausência de sofrimentos físicos e de perturbação da alma
Não são pois bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda a escolha e toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta de espíritos.
De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas a felicidade, e a felicidade é inseparável delas.
Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz que o sábio, que tem um juízo reverente acerca dos deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou só nos causa sofrimento leves?
Que nega o destino, apresentado por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso, instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanham a censura e o louvor?
Mais vale aceitar o mito dos deuses, do que ser escravo do destino dos naturalistas: o mito pelo menos nos oferece a esperança do perdão dos deuses através das homenagens que lhes prestamos, ao passo que o destino é uma necessidade inexorável.
Entendendo que a sorte não é uma divindade. como a maioria das pessoas acredita (pois um deus não faz nada ao acaso), nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam fundamentais para uma vida feliz, mas, sim, que dela pode surgir o início de grandes bens e de grandes males. A seu ver, é preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática é melhor que um bom projeto não chegue a bom termo, do que chegue a ter êxito um mal projeto.
Medita, pois, todas essas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente a um mortal o homem que vive entre bens imortais.”
Epicuro
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